De vez em quando, algum ser do imenso clube dos desvalidos que este mundo tem, tropeça em mim, ou eu nele.
Já considerei até a hipótese de ter algum íman secreto ou quiçá um letreiro que me acompanha e só é visível para alguns.
As vezes são animais, outras vezes são pessoas. Faz uns meses que de passagem por uma clínica para tratar de um assunto sem importância e enquanto esperava uns minutos, a senhora da limpeza se aproxima de mim, depois de uns comentários ocasionais a servir de interlúdio começa a despejar uma história que lhe trazia o coração oprimidíssimo.
Tinha ela algum tempo atrás começado a explorar um pequeno terreno de família que ninguém ligava de modo a entreter-se e produzir ainda algum lucro; mas o que se passava no terreno ao lado do seu deixava-a completamente desesperada: o terreno era habitado por um casal com um filho bem pequeno, uns seis anos. Acontece que o casal agredia a criança por tudo e por nada e com extrema violência; agrediam por falar e por não falar por estar parado e por não aparecer quando o chamavam...
a criança é enfezadinha, enfezadinha de dar dó... tem seis mas parece que tem quatro, mirradinho mesmo! vive encolhido com medo de apanhar e nem sabe falar direito. Não entendo aqueles pais. Parece que odeiam o filho...
o miúdo vive completamente negro, ás vezes quase nem se pode mexer. Se visse o olhar dele! Eu faz-me uma aflição que a menina nem imagina, olhe que as vezes até saio dali tão mal disposta que só me apetece morrer, mas o que que uma pessoa pode fazer?!
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Aqui eu tive que parar a senhora e perguntar-lhe se já lhe tinha ocorrido denunciar a situação, é que não só podia fazê-lo como recentemente tem obrigação cívica de o fazer já que a violência doméstica é crime público (felizmente agressões da porta de casa para dentro mudaram de estatuto e a lei aperfeiçoou-se um pouco de 2004 para cá)
Depois tive algum trabalho a explicar-lhe que violência doméstica não é só o marido bater na esposa... é também o inverso (menos comum mas existente) é agressões entre quem partilhe a mesma casa, de pais para filhos. E de filhos para pais. E não é só bater físicamente, é muito mais e mais subtil que isso: toda a coação, intimidação e privação, toda a imposição em suma, de uma vontade sobre outra. Violência sexual. Os maus tratos podem ser emocionais, verbais e psicológicos, assim como ameaças, isolamento social forçado e mesmo intimidação, além de controle económico, são ofensas à integridade e dignidade.
Dei-lhe vários números de denúncia específicos para aquele caso (vêm nas primeiras páginas da lista telefónica) dei-lhe força e apoio para seguir com o que deveria ser a sua prioridade máxima
"-e se depois se vingam de mim?!"
-Não seja por aí. as denúncias não obrigam a identificação de quem as faz. Protegem o anonimato.
Deixei o meu contacto e reiterei a obrigação de denúncia imediata à policia.
Ficou à beira de dar um passo inédito na vida dela, a intervenção activa e aumento de consciência e direitos.
Tempos depois tinha um recado à espera: a criança tinha sido retirada aos pais. E eles indiciados por crime.
A senhora não cabia em sí de contente e estava obviamente orgulhosa
Eu fiquei feliz por ter ido naquele dia aquela clínica, pelo desenvolvimento da história e por a ver a ela tão mudada, tão activa, sem aquele ar oprimido por um fantasma com que tinha vindo ter comigo inicialmente; parecia ter ganho uma alma nova.
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Em Portugal:
Tem vários links sobre violência doméstica em Programas Especiais
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do mundo:
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