Mais um óptimo texto de
Josep-Vicent Marqués incluído no livro mencionado no post anterior, a focar o quanto os condicionamentos culturais tantas vezes mais atrapalham que beneficiam os relacionamentos
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Uma pessoa a entrar na terceira idade que passasse em revista aquilo que sentiu ao longo da sua vida pelas cinco ou seis pessoas mais significativas da sua experiencia amorosa deveria reconhecer que cada caso foi diferente e, dentro de cada um deles, foi diferente o que sentiu segundo a época.
No entanto, toda a nossa bagagem de conhecimentos adquiridos através da educação se reduz a quatro ou cinco ideias basicamente idiotas:
Primeira - não há mais que três ou quatro tipos de amor: familiar (pelos papás e pelos filhos, pelos irmãozinhos e pela tia Matilde); amor de apaixonar-se para casar; e amor platónico (antigamente atribuído aos trovadores e hoje em dia aos fãs dos cantores);
Segunda - tudo o mais são paixonites, paixões funestas ou confusão entre o coração e o baixo-ventre;
Terceira - pode-se escalonar de quem se gosta mais, como se o sentimento dependesse de um único factor;
Quarta - se alguém se apaixona ou se casa, todos os outros amores desaparecem ou se convertem em ameaça;
Quinta - a paixão conduz ao casamento, onde o amor não desaparece, mas se transforma em outra coisa mais tranquila e mais profunda (pelos vistos, compatível com os bocejos e as bofetadas).
Fomos educados nesta filosofia. Homens e mulheres. Por isso as coisas são como são. Quando nos confrontamos com um sentimento que poderia ir mais longe do que a cama e menos longe do que o registo civil fazemos uma confusão, atiramo-lo pela janela ou promovemo-lo a paixão com intenção matrimonial. E se nos defrontamos com dois ou três sentimentos de uma vez, a sociedade sugere-nos discretamente que nos suicidemos.
Embora tenham dito o mesmo a homens e mulheres disseram-no-lo de forma diferente. Aos homens preveniram-nos contra o amor. Às mulheres fizeram-lhes uma propaganda ilimitada do assunto.
Joãozinho e o amor
Joãozinho R é um miúdo aplicado, muito interessado pela história. Através dela sabe que Dido se empenhou em reter Eneias e que Circe fez o mesmo com Ulisses. Pedro II de Aragão morreu em Batalha de Muret por ter folgado em demasia com uma mulher na véspera
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Eduardo VIII teve de abandonar o bem remunerado trono do Reino Unido por se ter apaixonado pela Sr.ª Simpson, e Júlio Iglésias não triunfou internacionalmente até se ter separado da sua senhora. Joãozinho intui que isto do amor deve ser levado com prudência: é possível que a mulher seja o repouso do guerreiro, mas o amor parece ser o seu desarmamento. Joãozinho está a fazer, de qualquer modo, um esforço para imitar a dureza e a rudeza próprias do modelo masculino, para além de continuar a controlar os seus sentimentos.
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Embora os padres - se é que o Joãozinho passou por um colégio desses - lhe digam que o sexo é mau, os seus amigos e amigalhaços, o seu padrinho, e até o seu pai, dizem-lhe que embora seja mau, é delicioso e é coisa de homens. É improvável que lhe façam idêntica propaganda com respeito ao amor.
Se se sentir ternamente atraído por uma rapariga, não poderá confessá-lo à malta pois rir-se-ão de si. Dirá que a miúda é boa ou que lhe fica bem, como se ela fosse um casaco do seu tamanho.
O certo é que os varões, mais que educados sobre o amor, são vacinados contra ele. Quer isto dizer que nós, os varões, amamos menos ou tendemos a amar menos? Eu não diria tanto, embora também não o negasse redondamente. O que é certo é que tendemos a reprimir-nos, a negar-nos a nós mesmos que amamos, a pôr limites ao sentimento e a exprimir pouco e mal o nosso amor ou os nossos amores.
Flora e o amor
Flora, ou Florinha, a irmã do Joãozinho, cedo se vê submersa num clima de preparação para o amor. O escamoteamento da sexualidade torna possível que se lhe apresente num só lote o amor pelos papás, pelos irmãos, por um futuro marido, por uns futuros filhos e que, além disso ainda tenha a oportunidade de o pôr em prática com os seus bonecos: um bebe de borracha que chora, faz chichi e se parece com o Menino Jesus, e uma ou várias bonecas com cara de paspalhonas.
Na educação tradicional, a menina, a mulher, não é um ser para si mesmo nem para a interacção social. É um ser para os outros: de momento a mamã e o papá; mais tarde o marido e os filhos; pessoas às quais deve dar amor e das quais também o deve esperar. Por isso a grande vitória da sua vida será conseguir o amor - ou algo que se lhe assemelhe - e a grande frustração será não o encontrar. Toda a sua história gira em torno de um acontecimento, de um único destino.
As amigas, a imprensa considerada como feminina, as novelas românticas, as telenovelas falar-lhe-ão do amor, desse único episódio significativo da sua vida. Ensinar-se-lhe-á - astúcias do sistema a confundir amor com casamento. E quando for impossível manter a ficção, porque o seu Zé é um chato exigente, um bom homem aborrecido, ou porque descobre que há uma dimensão sexual no amor, oferecer-se-lhe-á como consolação
Superestimulada para o assunto, Florinha aprenderá desde pequena a adivinhar quem gosta de quem, interessar-se-á por saber quem, ao seu redor, anda docemente afectado por tão importante problema, e conseguirá inclusivamente conhecer a linguagem amorosa com uma profundidade invejável por poetas e oradores.
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Como poderão amar-se Joãozinho, o prevenido contra o amor, e Flora, a romântico-dependente?Espero que não me tenham compreendido mal. Um jornalista idiota ou uma leitora acrítica de Corín Tellado perguntar-me-ia: «Então, você não acredita no amor?» Pelo contrário, acredito muitíssimo. Simplesmente, acredito em muitos tipos de amor. Mas, em geral, aos leitores não lhes interessa o amor, mas apenas conseguir formar um casal estável, uma relação que desejam considerar amorosa porque é mais respeitável chamar-lhe amor do que medo da liberdade ou conveniência. Texto de Josep-Vicent Marqués*