Thursday, June 29, 2006

Cidades com corvos











(Ana Sousa Dias recebe Grande Prémio Gazeta Jornalismo 2003)

Achei uma delicia esse texto que li da Ana Sousa Dias, razão pela qual o trouxe e partilho


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Achei-o entorpecido, conformado, mas talvez fosse essa a ideia que ele queria que dele tivessem os forasteiros curiosos.

No poleiro onde acompanhava o movimento dos vizinhos e respirava os escapes de milhares de automóveis, este pássaro, inevitavelmente de nome Vicente, era um símbolo da Lisboa malandra e sabida que José Cardoso Pires saúda n'A Républica dos Corvos, de 1998.

A lenda diz que estas aves negras truxeram para Lisboa o corpo ressequido de São Vicente, quando este errava pelo mares feito náufrago, e assim conquistaram lugar cativo como símbolos da cidade. Carvão e corvos, de cor idêntica e nome parecido, conviveram até à extinção de ambos no fim do século passado

Levava na bagagem, para aproveitar as longas horas de voo, o livro Kafka à Beira-Mar, do japonês Haruki Murakami, numa desatenta coincidência - dirigia-me a Toquio onde fora convidada a assistir à Folle Journée ou Festa da Música, que a equipa de René Martin desencadeou na francesa Nantes e estendeu a Lisboa e Bilbao. Ia ouvir Mozar em Tóquio, em quatro dias de concertos sucessivos e quase sempre com lotação esgotada, mas principalmente ia conher um lugar onde nunca pensara ir, tão longínquo e inacessível.

Os gatos povoam o livro de Murakami mas o corvo é uma presença constante: inteligente e fraterno, companhia tutelar do jovem Kafka. Reencontrei-o em Tóquio, e retomo a expressão: presença constante. Provavelmente eu nunca tinha ouvido a voz dos corvos, o 'crocitar' de que aprendera apenas o nome e foi na capital do Japão que a descobri, nos extensos e cuidados jardins, nas ruas, até da janela do hotel

Numa tarde fria com chuvinha miudinha, fiz um longo passeio na área de Omotesando, onde arquitactos de topo mundial desenharam sofisticados edificios para casas como a Prada, a Dior ou a Cartier, culminando no grande centro comercial projectado por Tadao Ando. As marcas de luxo internacional ocupam a primeira linha das avenidas, mas se procurarmos nas ruas interiores ou nos andares recuados encontramos os mais extraordinários estilistas japoneses que dão ao linho, à seda e ao algodão forma deslumbrantemente simples.

Foi tambem nesse bairro que encontrei os lírios azuis de Van Gogh, nas águas do jardim do Museu Nezu, mancha de côr pacificadora e inesquecível cercada de infinitas tonalidades de verde.

Dentro do museu que guarda tesouros nacionais, biombos cobertos a folha de ouro são retratos do Japão eterno, em pinturas delicadas que mostram cerejeiras e glicínias em flor, gatos, jardins, montanhas entre nuvens, cursos de água, algumas pessoas.

E de repente um biombo a ouro e negro, nenhuma outra cor a pertubar a imagem: os corvos, muitos e para sempre.

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Texto da jornalista Ana Sousa Dias in revista centro colombo //06

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