Escreve
Laurinda Alves:
*Li com atencão, perplexidade e nojo as páginas do
Público de terca-feira passada sobre as 31 mulheres assassinadas este ano pelos namorados, maridos e amantes. O enunciado é difícil de acompanhar mas não é por todas as vítimas serem muheres ou crianças. É pela violencia da coisa própriamente dita. Podiam ser homens, velhos ou novos, que a repugnancia era igual. Não se trata de uma reacção feminista, quero dizer. Trata-se de uma consciencia profunda de que há quem morra porque teve o azar de casar ou dormir com o inimigo.
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A exposição de uma sucessão de casos dramáticos tem a virtude de mostrar um filme mais completo e mais próximo de uma realidade muito dura de aceitar. Há demasiados homens que maltratam e matam as mulheres com quem estão ou estiveram envolvidos e há muitos que o fazem na presença do próprios filhos. Alguns destes homens suicidam-se no mesmo dia, logo a seguir, mas isso não acrescenta nada a não ser impotencia e raiva
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Artemisa Coimbra, do
Observatório das Mulheres Assassinadas, investigadora e autora de uma tese de mestrado sobre violencia domestica, foi longamente citada pelo
Público no dia em que saiu o artigo que falo e destacou duas ou tres coisas que merecem ser sublinhadas. Destaco acima de tudo a "invisibilidade" destas mulheres, que são maltratadas ou ameacadas durante anos a fio e finalmente mortas. Nunca se fala das histórias destas mulheres, das suas aspirações e medos, das suas fragilidades e forças. No dia em que são assassinadas relatam-se os factos, enumeram-se os filhos e descrevem-se as circunstancias do crime mas raramente se gastam tres linhas a dizer quem eram e como eram estas mulheres. É estranho. Mesmo depois de mortas acontece-lhes o mesmo que em vida: não tem existencia própria.
Já os homens que as humilham e matam esses tem todos identidade e quase sempre o direito a uma personalidade. Estranho, insisto.
Porque será que estas mulheres são tratadas em vida e na morte como não existentes?
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O enunciado desta semana remeteu-me fatalmente para a história de dois irmão, "filhos de família" no sentido mais convencional da expressão que conheci nos tempos de liceu e tinham aparentemente uma vida normal, equilibrada e feliz até ao dia em que o pai foi acordá-los ao quarto para terem todos uma conversa na sala. Os dois irmão vieram ensonados para a sala onde estava a mãe e o pai e mesmo antes de fazerem qualquer pergunta o pai declarou que ia matar a mãe e queria que eles vissem. E matou e eles viram. O pai suicidou-se anos mais tarde na prisão e estes dois irmãos de quem eu era bastante próxima, ainda hoje são perseguidos pelas imagens de uma tragédia impossivel de adivinhar dada a estrutura familiar e a sua condicão social. Se conto isto agora é para de certa forma exorcizar este meu fantasma antigo e para reforcar a ideia de que há homens desiquilibrados, feios, porcos e maus onde se imagina mas tambem onde menos se espera.
Feios, porcos e maus -
Laurinda Alves in
Coisas da Vida/
Público de 29/8/08
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Ainda há lavadeiras em Alfama. Dessas que esfregam a roupa à mão em tanques públicos e fazem concorrencia às lavandarias: Adelina é uma dessas resistentes. Mulher de porte altivo nos seus 72 anos e na sua veste negra onde ressalta o amplo avental branco
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Para ela, o ofício não morrerá pela falta de encomendas [...] O que mata o ofício é o rendimento mínimo e a possibilidade de decidir ter um filho.
[...] Lembrei-me dela ao ler o relato de mais uma tentativa de homicídio de uma jovem mulher que caiu baleada pelo companheiro em plena rua de outro bairro social (S. Roque da Lameira) Tinha um filho de quatro meses ao colo. O relato dos vizinhos -cito de memória - descrevia a vítima como tão pacata que "passava o dia sentadinha num banco à beira de casa" enquanto o companheiro se enfrascava na tasca do senhor Joaquim". Imagino-a numa sucessão de dias passados nessa mansa espera com o filhito ao colo. À espera de que? Do regresso do monstro (o qualificativo é meu!) , que, na volta das tabernas onde arejava o desemprego, a agredia sistemáticamente dentro e fora de portas. Foi alvejada na cabeca, segundo o relato, por "recusar passar ao companheiro bebado o rendimento minimo que acabara de receber" e queria reservar para "pagar a renda" e alimentar o filho. Desta vez a recusa não lhe custou apenas a sova habitual, custou-lhe provávelmente a vida.
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Pergunto-me que projecto de reinsercão social tolera o passar os dias "sentadinha num banco" esperando o regresso do agressor. Que acompanhamento social tem um casal uma história de violencia que até é crime público. Tolerada meses a fio.
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Quando vi [...] a reportagem da entrega de chaves de casas sociais em Loures uma mulher diz que é o dia mais feliz da sua vida. Vai receber a casa dos seus sonhos, onde pretende cuidar ainda melhor dos dois filhos. Fico contente por ela. Não acho que os direitos se agradeçam. E o direito à habitacão condigna é um dos mais básicos. Mas é isto que eu esperava da aplicação dos meus impostos.
Logo a seguir, outra mulher entra na nova casa e dispara um chorrilho de defeitos: é o tecto, o rodapé mal rematado, a existencia de um único roupeiro, [...] Ouço-a entre o pasmo e a indignação. Impossível evitar pensar que aquela casa lhe foi entregue com os meus impostos (os nossos impostos!) [...] Gente que vai pensar com toda a legitimidade, ser injusto andar a sustentar os sonhos de grandeza de quem espera que esses sonhos lhe caiam no colo. Como se só existissem direitos sem contrapartida de deveres. [...] Não se pode tolerar gente a viver do Rendimento Social alojada em bairros sociais e com as rendas em atraso se queixe amargamente, como assistimos recentemente, de terem sido assaltados, perdendo haveres de que constavam plasmas e PlayStations!
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A pretexto de combater a pobreza está-se simplesmente a investir na marginalidade.
Espaco Público - coluna de
Graca Franco - Público de 29/8/08
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Urgente, digo eu, promover neste país (-e no mundo inteiro!), mais capacidade de autonomia própria, mais auto-estima, mais auto-respeito e mais consciencia de direitos, nossos e dos outros. De deveres, tambem, nossos e alheios. E alargar essa consciencia e ética estendendo a sua percepção a tudo o que vive, sem fronteiras de espécies nem ambientes....
E se uma parte disso começa em casa, outra parte completa-se na educação exterior, na escola, nas estruturas de apoio público
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Será desejar muito?!