Underground é um livro diferente da restante linha de romances escrita por Haruki Murakami.
Na primeira parte temos os variados relatos de todos os que foram vitimados pelo atentado com gás sarin no metro de Tóquio a 20 de Março de 1995 e ficaram com mais ou menos sequelas (cerca de 6000 pessoas) ou dos familiares das vítimas que sucumbiram, bem como do pessoal de assistência médica.
No livro II, temos o depoimento de membros da seita Aum Shinrikyo, (Seita Verdade Suprema) liderada por Shoko Asara - o mandante do atentado, posteriormente condenado à morte tal como alguns dos acólitos que executaram as operações no metro.
Diferentemente dos relatos das vítimas, há uma interacção verbal considerável entre Murakami e os seguidores da seita, que visa esclarecer qualquer ponto mais hermético para quem lê.
Entre os dois livros, Murakami tece algumas reflexões, nomeadamente à estrutura mental –ou ausência dela, que permite que seitas como a Aum proliferem.
Na primeira parte temos os variados relatos de todos os que foram vitimados pelo atentado com gás sarin no metro de Tóquio a 20 de Março de 1995 e ficaram com mais ou menos sequelas (cerca de 6000 pessoas) ou dos familiares das vítimas que sucumbiram, bem como do pessoal de assistência médica.
No livro II, temos o depoimento de membros da seita Aum Shinrikyo, (Seita Verdade Suprema) liderada por Shoko Asara - o mandante do atentado, posteriormente condenado à morte tal como alguns dos acólitos que executaram as operações no metro.
Diferentemente dos relatos das vítimas, há uma interacção verbal considerável entre Murakami e os seguidores da seita, que visa esclarecer qualquer ponto mais hermético para quem lê.
Entre os dois livros, Murakami tece algumas reflexões, nomeadamente à estrutura mental –ou ausência dela, que permite que seitas como a Aum proliferem.
Abaixo, alguns exertos.
* * *
do Unabomber, publicado no New York Times em 1995:
O sistema organiza-se de maneira a colocar pressão sobre aqueles que não se conformam com ele. Os que não são conformes ao sistema são doentes; fazê-los conformar é a cura. Consequentemente o processo de poder que procura atingir a autonomia é quebrado, e o individuo é subordinado a processos de poder dependentes de outrem, que o sistema obriga a cumprir. Procurar a autonomia é visto como uma doença.
[…] o modus operandi da Unabomber é practicamente idêntico ao da Aum […] O argumento que Kaczinsky apresenta está essencialmente correcto. Muitas das partes do sistema social em que nos inserimos e em que funcionamos têm de facto, como objectivo reprimir a autonomia individual ou nas palavras do provérbio japonês: “a unha que se destaca é cortada rente” […] Kaczinsky descurou – com ou sem intenção – um factor importante. A autonomia não deixa de ser a imagem invertida da dependência de outrem. Se uma pessoa for abandonada em bebé numa ilha deserta não terá qualquer noção do que significa autonomia. A autonomia e a dependência são como a luz e a sombra presas na órbita gravitacional uma da outra, até ao dia em que, passado um período considerável de tentativas e fracassos, cada indivíduo consiga encontrar o seu próprio lugar no mundo.
Os que não conseguem encontrar esse equilíbrio, como talvez tenha sido o caso de Shoko Asahara, terão de compensar através da criação de um sistema limitado (embora na verdade bastante eficaz) […] Os esforços para superar as próprias deficiências fizeram com que ficasse preso num circuito fechado. Um génio aprisionado numa lâmpada com um rótulo a dizer “religião” que ele começou a colocar no mercado como uma espécie de experiência partilhada […] Também ele teve certamente o seu próprio satori, atingiu alguma espécie de valor paranormal. Sem essa extraordinária inversão de valores do quotidiano, Asahara nunca teria sido tão poderoso e carismático. Numa certa perspectiva, a religião primitiva transporta sempre consigo uma aura especial que emana da aberração psíquíca.
Para obter a autodeterminação que Asahara providenciava a maioria daqueles que se refugiaram na seita Aum parece ter depositado tudo o que possuía em termos de identidade – cofre e chave – nesse banco espiritual chamado Shoko Asahara.
[…] Tinham finalmente alguém que olhava por eles, que os poupava à ansiedade de enfrentarem sozinhos as situações novas e os libertava de qualquer necessidade de pensarem por si mesmos.
[…] Só Shoko Asahara lutava: a maioria dos seus seguidores era simplesmente engolida e assimilada pelo seu ego sedento de batalhas […]. Não eram vítimas passivas: procuravam activamente ser controladas por Asahara. O controlo mental não é algo que se possa obter ou entregar de modo tão simples. É uma dança a dois.
[…] a pessoa a quem confiámos o ego oferece-nos uma nova narrativa. Entregámos-lhe a verdadeira, o que recebemos em troca é uma sombra. E, depois do nosso ego se ter fundido noutro, é inevitável que adoptemos a narrativa por ele criada.
E que tipo de narrativa é esta? Não precisa de ser nada particularmente sofisticado, nada de complicado ou refinado. […] De facto quanto mais esquemática e simplificada, melhor. Um pechisbeque, umas sobras requentadas serão o suficiente. Assim como assim, a maior parte das pessoas está farta de cenários complexos e multifacetados.
[…]
Shoko Asahara era suficientemente talentoso para conseguir impor a sua narrativa requentada a outras pessoas (na sua maior parte, era disso mesmo que elas vinham à procura.) Era uma história mal-amanhada, risível […] A partir desta perspectiva, num sentido limitado, Asahara acabava por ser um grande contador de histórias, capaz de antecipar o espírito da época. Não se deixava tolher pela noção, consciente ou não, de que as suas ideias e imagens eram lixo reciclado.
[…]
Quaisquer que fossem as deficiências da narrativa, elas eram as deficiências do próprio Asahara, logo, não representavam qualquer obstáculo para os que escolhiam unir-se a ele […] Irremediavelmente maculado pela paranóia e pelo delírio, desenvolvia-se um novo pretexto, grandioso e irracional, até já não haver retorno possível…
Era esta a narrativa oferecida pela Aum, pelo lado deles. Estúpida, poder-se-á dizer. E é-o, sem dúvida. Quase todos nos rimos do cenário extravagante e absurdo que Asahara desenhava. Rimo-nos por ter fabricado um disparate pegado e zombámos dos seguidores que eram atraídos por aquele isco para malucos.
[...]
Já alguma vez ofereceram alguma parte do vosso Eu a outra pessoa (ou a algo), assumindo em contrapartida uma outra narrativa? Não teremos todos nós já confiado parte da nossa personalidade a um qualquer sistema ou ordem superior? E se o fizemos, não terá acontecido esse Sistema ter, a dada altura, exigido de nós algum tipo de loucura? A narrativa que agora é vossa, será ela real e verdadeiramente vossa? Os vossos sonhos serão realmente os vossos próprios sonhos? Não poderão ser as visões de outrem que mais tarde ou mais cedo se poderão transformar em pesadelos?
Já alguma vez ofereceram alguma parte do vosso Eu a outra pessoa (ou a algo), assumindo em contrapartida uma outra narrativa? Não teremos todos nós já confiado parte da nossa personalidade a um qualquer sistema ou ordem superior? E se o fizemos, não terá acontecido esse Sistema ter, a dada altura, exigido de nós algum tipo de loucura? A narrativa que agora é vossa, será ela real e verdadeiramente vossa? Os vossos sonhos serão realmente os vossos próprios sonhos? Não poderão ser as visões de outrem que mais tarde ou mais cedo se poderão transformar em pesadelos?
(Underground - Haruki Murakami)
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