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Onde ela ficava melhor era sentada na cama, olhando para fora. As suas duas patas de cor creme e ligeiramente riscadas, ficavam direitas lado a lado, com as extremidades prateadas. As orelhas, levemente franjeadas de um branco que parecia prata, levantavam-se e mexiam-se, para trás, para diante, ouvindo e sentindo. O focinho virava-se, um pouco, a cada nova sensação, alerta. A cauda mexia, noutra dimensão, como se a ponta estivesse captando mensagens que os seus outros orgãos não captavam. Ela sentava-se composta, luminosa, olhando, ouvindo, sentindo, cheirando, respirando, toda ela, pêlo, bigodes, orelhas - tudo numa vibração delicada.
Se um peixe é o movimento da água corporizado, tornado forma, então esta gata é um diagrama e um padrão de ar subtil.
Oh gata; dizia eu, ou entoava: gata boniiiita! Gata deliciosa! Gata exótica! Gata acetinada! Gata com macieza de mocho, gata com patas de mariposa, gata jóia preciosa, gata milagrosa! Gata, gata, gata, gata.
Primeiro, ela ignorava-me; depois virava a cabeça, sedosamente arrogante, e semicerrava os olhos a cada nome de louvor, um de cada vez. E depois, quando eu acabava, bocejava, deliberadamente, afectada, mostrando uma boca de um rosa de gelado e uma língua curva e rosada.
Ou, deliberadamente, agachava-se e fascinava-me com os olhos. Eu olhava para eles, desenhados a lápis preto na sua forma amendoada, com outro traço em volta de cor creme. Sob cada olho. uma pincelada escura. Verdes, olhos verdes; mas na sombra, de um dourado escuro - uma gata de olhos escuros. Mas na luz, verdes, um esmeralda fresco e claro. Atrás dos globos transparentes dos olhos, pedaços de asa de borboleta com filamentos brilhantes. Asas como jóias - a essência de asa.
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Nos olhos da gata cinzenta jazia o resplendor verde da asa duma borboleta de jade, como se um artista tivesse dito: o que pode ser tão gracioso, tão delicado como um gato? O que pode ser mais naturalmente criatura do ar? que ser aéreo tem afinidade com o gato? A borboleta, a borboleta, evidentemente! E ali no fundo dos olhos da gata jaz este pensamento, apenas sugerido, com um semi-riso; escondido atrás da franja das pestanas, atrás da fina pálpebra interior e das evasões da coqueteria felina.
Gata cinzenta, perfeita, refinada, uma rainha; gata cinzenta com suas insinuações de leopardo e cobra; sugestões de borboleta e mocho, uma miniatura de leão com garras de aço para matar, gata cinzenta cheia de segredos, afinidades, mistérios - gata cinzenta, com dezoito meses de idade, uma jovem matrona na flor da vida
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imagem daí -site de protecção
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Gatinhos. Uma criatura viva na sua membrana transparente, rodeada pela imundíce do seu nascimento. Dez minutos mais tarde, húmido mas limpo, já mamando. Dez dias depois, uma migalha de olhos macios e nebulosos, a boca abrindo-se num silvo de corajoso desafio à enorme ameaça que sente debruçada sobre ele. Nesta altura, em vida selvagem, confirmaria a sua selvejaria, tornando-se um gato selvagem. Mas não, uma mão humana toca-o, um cheiro humano envolve-o, uma voz humana sossega-o. Depressa sai do ninho, confiante que as gigantescas criaturas à sua volta não lhe farão mal. Cambaleia, depois anda, depois corre a casa toda. Acocora-se no caixote de areia, lambe-se, sorve leite, depois agarra-se a um osso de coelho, defende-o contra o resto da ninhada. Gatinho encantador, Gatinho bonito, lindo fofinho pequenino delicioso bichinho - e vai-se embora. E sua personalidade será formada pela sua nova casa, pelo novo dono
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daqui
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Quando gata preta dormita, olhos semi fechados, torna-se no que realmente é: o seu ser verdadeiro sem a devoção atarefada a que a maternidade a obriga. Pequeno animal sólido e macio, sentada, uma gata preta , preta com o seu nobre perfil, curvo e distante.
Gato das Sombras! Gato plutónico! Gato de alquimista! Gato da meia noite!
Mas gata preta não está hoje interessada em cumprimentos, não quer ser incomodada. Faço-lhe festas, ela arqueia levemente as costas. Solta um meio ronrom, num agradecimento polido ao alienígena, volta a olhar para o mundo escondido atrás dos seus olhos amarelos.
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Extractos do livro da escritora Doris Lessing *'Gatos e Mais Gatos'
*Doris Lessing é uma autora com um número extenso de livros publicados, muitos de ficção científica.
'Gatos e mais gatos' (trad. portuguesa) conta a historia de alguns gatos que ela conheceu...
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Vivido...e experimentado.
ReplyDeleteHoje eu queria mesmo escrever que a festa de veludo da minha gata na minha cara era de ouro...Coincidência?
Um abraço e obrigada por esta evocação felina...
R.Leonor
Afinidades, R.Leonor... geram sincronicidades espantosas!
ReplyDeleteUm abraço fraterno