Tuesday, February 28, 2006

Razões para viver


o autor de Razões para viver , e o quadrúpede Negão

Descaradamente roubado daqui. Porque achei Lindo.

Para saborear a arte de quem sabe contar uma história e também para reflectir...

Eu era amigo do Hominho, que se chamava Anselmo. Ele era filho de dona Alta, que se chamava Altamira. Ela era amiga da minha mãe, em Baixo Guandu, a cidade plana, quente, de ruas longas e retas na ponta do triângulo formado pelo encontro dos rios Doce e Guandu. As duas eram da Congregação Mariana e usavam véu preto quando entravam na igreja. Com a diferença de que minha mãe usava roupas coloridas, vestidos brancos com bolinhas azuis, saias vermelhas e blusas cor de creme. Dona Alta, para lembrar o marido morto, usava preto e duas alianças grossas no dedo anelar da mão esquerda.


Hominho e eu, a gente tinha oito anos, mas ele era mais baixo. E também era mais ágil e mais veloz para subir em árvores, atravessar rio, correr pelas ruas quando alguém, mais alto ou mais velho, corria atrás de nós. Eu tinha duas cachorras, a Mimosa e a Malvina. Na casa da dona Alta só tinha galinhas e porcos.

E eu estava lá, na casa dela, esperando a hora certa da minha mãe e dona Alta apanharem os véus, os missais e os terços, e saírem pra Igreja. Era em momentos assim que Hominho e eu cometíamos o nosso pecado preferido: caçar lagarta-fogo debaixo do clube, um casarão com a porta principal virada para a praça e os fundos com pernas compridas enfiadas nas águas do rio. O lugar era a nossa piscina, sendo as vigas de madeira entre as pilastras os nossos trampolins. E era também um bestiário, com lagartas, marimbondos violentos, borboletas amarelas, ninhos de passarinhos.

Mas na hora de sair, dona Alta ouviu o ruído no quarto dela. Vinha de algum lugar, era fino, insistente, como um coro de recém-nascidos à procura da mãe. Ninguém mais ouvia, só ela. Por isso, todo o mundo se amontoou no quarto, em silêncio, até que Hominho desse o alerta:

-Ouvi! Ouvi! É no guarda-roupa!

Dona Alta abriu a porta do armário grande, de madeira brilhosa. Tirou casacos guardados em sacos de plástico com naftalina, tirou cobertores grossos, tirou caixas, embrulhos e pacotes. Aí, gritou:

-Ah, meu Deus! É rato!

Hominho e eu pulamos na frente das mães. Passamos entre as pernas agitadas delas e olhamos para dentro do guarda-roupa. No canto, quatro filhotes, menores que dedos, com peles tão finas e sangüíneas quanto lábios de gente muito branca, tão delicados e ingênuos quanto olhos de crianças, procuravam a mãe, que tentava fugir com eles pela boca.

Dona Alta voltou para o quarto com uma vassoura grande, de cabo comprido. Mas minha mãe pediu:

-Vamos embora, Alta. A missa já deve ter começado.

E ficamos nós dois com a incumbência de dar sumiço nos bichos do guarda-roupa. Dona Alta explicou, palavra por palavra:

-Não presta, não serve pra nada, é horrível saber que isso existe. Mata e joga fora.

E ainda explicou:

-As roupas e as caixas, pode deixar. Quando eu voltar da missa, vou limpar o guarda-roupa com álcool para depois arrumar tudo outra vez.

Quando as duas mães saíram para rezar, com os véus, os missais e os terços, Hominho e eu nos agachamos em frente da porta do armário. Os ratinhos se espreguiçavam, esticavam as pernas e os braços, enrugavam as caras, apertavam os olhos pequenos, como se viver fosse atravessar a nado um rio largo, caudaloso e bravo. Com uma força magnífica, abriam as bocas à procura das tetas da mãe.

-Vamos levar eles embora?

Fui eu que tive a idéia.

-Mas a mãe falou pra matar e jogar fora.

-A gente não mata. Só joga fora.

E aí tiramos os sapatos pretos de dentro da caixa. Agarramos a mãe pelas patas, abraçamos os filhotes nas mãos e guardamos a família inteira debaixo da tampa de papelão.O sol estava bravo quando pegamos uma das ruas muito retas de Baixo Guandu. Atravessamos a praça, descemos a ribanceira ao lado do clube e chegamos, então, no nosso esconderijo com piscina, trampolim e bestiário.

Lá, abrimos a caixa e soltamos a mãe com seus filhotes. Ela cheirou a viga com aflição, rodou sobre o próprio corpo várias vezes, arrastou o rabo na madeira e voltou para os quatros filhos miúdos, quase invisíveis, quase como orvalhos cor-de-rosa vivo. Depois, fomos para casa, pusemos os sapatos de volta no lugar certo e saímos para outro grande pecado, que era o de ir até o cercado da prefeitura para futucar os cavalos, que reagiam com coices bravos.

Por qualquer razão, talvez até falta de tempo, ou coisa mais banal, ou motivo mais sério ainda por entender, nunca mais voltei a Baixo Guandu. Só me lembro do delta das águas, do calor, das ruas muito retas e entrecruzadas. Lembro também dos véus, dos missais e do sino da igreja. E me lembro de 30 anos depois, quando minha mãe me perguntou, como quem, subitamente, puxa pela memória a notícia que já era para ter sido dada há mais tempo:

-Sabe o Hominho?

Olhei para ela, sentada na sombra da castanheira na beira da praia. Os olhos da minha mãe brilhavam. A boca se preparava para anunciar a tragédia. Eu ainda estava em silêncio, na observação desse desenho materno, quando ela completou a frase:

-Se matou.

Esperou que eu reagisse. E continuou:

-Tem uns dois anos já. Encontrei a dona Alta e ela me disse.

Então eu me remexi por dentro para querer saber as razões para se matar.

-Coitado, não agüentou. Tinha dívidas enormes, a mulher dele foi embora com os filhos. Chegou um dia em casa e deu um tiro nas têmporas. Que horror, meu Deus.

Pensei nele. E aí lembrei também que Hominho era capaz de atravessar, como ninguém, o encontro do Guandu com o rio Doce. Que sabia subir, sem escorregar, as pedreiras do morro atrás da serralheria. E que sabia levar ninho de passarinho de um lugar para outro sem machucar os ovos.

Mas foi então que voltou a voz da dona Alta, quando saía de casa, amarrada no luto, presa ao missal. Foi ela quem disse:

-Não presta, não serve pra nada, é horrível saber que isso existe. Mata e joga fora.
*

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