Biscuit era a mascote da Anifieira
Escreve Maria Pinto Teixeira:
O Biscuit era o cartão de visita da associação, sempre disposto a receber os visitantes com saltos de alegria e beijos. O seu amor pela liberdade custou-lhe a vida, mas durante o tempo que passou connosco sabemos que foi o nosso residente mais feliz. Dava gosto vê-lo a correr e saltar pelos campos e a voltar ofegante e satisfeito para"casa". É essa a imagem que vamos guardar dele para sempre.
Gostaria de aproveitar a oportunidade para fazer um apelo a todos os que vivam na zona Norte do país.
Apesar de todos os nossos esforços para terminar as obras no abrigo (que incluem a construção de novas boxs e a criação de um espaço de passeio para os nossos animais), muitos dos cães que habitam a Aanifeira vivem fechados em jaulas pequenas de onde nunca saem para esticar as patas e ver um pouco do mundo exterior.
Para estes animais, mais ainda do que uma cama quentinha ou um petisco diferente, o melhor presente de todos é um passeio ao ar livre para dar umas corridas, sentir cheiros diferentes, ter um momento de liberdade e alegria.
Por isso agradecemos a todos os que possam vir aos sábados passear alguns dos nossos animais. A Aanifeira situa-se numa zona rural, com zonas verdes muito bonitas e ideais para passeios.
Se estiver disponível para ser um "padrinho de passeios" dos nossos animais, por favor envie um email para aanifeira.projectos@gmail.com e ser-lhe-á enviado um croquis com as indicações para chegar até ao nosso abrigo e os horários nos quais poderá visitar-nos.
Segue em seguida o texto do Victor, que conseguiu entrar na alma do nosso Biscuit e escrever as palavras que eu tenho a certeza que ele gostaria de nos ter deixado.
Abraços a todos,
Maria Pinto Teixeira
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Olá Amigos:
Peço desculpa por só agora enviar notícias, mas esta transição foi um pouco confusa... por vezes demoramos um pouco a apercebermo-nos da nossa nova condição, principalmente quando ela é feita num momento de felicidade.
Queria agradecer do fundo do meu coração a todos os voluntários e amigos da Aanifeira pelo carinho com que sempre me trataram. Graças a vocês, recuperei a confiança no Ser Humano.
Não me recordo bem como nem porquê entrei na Aanifeira, mas lembro-me que foi um momento de grande tristeza, pois aqueles a quem eu tinha jurado fidelidade eterna deixaram-me num local desconhecido sem meterem dado qualquer hipótese de encontrar o caminho de regresso a casa. Pouco tempo depois vi-me rodeado de seres na mesma condição que eu, alguns numa profunda tristeza, outros numa imensa revolta, outros ainda, conformados e outros tão confusos como eu...
Aos poucos fui entrando na rotina diária: umas pessoas enormes vinham limpar o chão e depois davam-nos comida e água. A comida não era muito variada, mas eles tinham sempre a preocupação de que esta nunca nos faltasse.
Por vezes nós brigávamos por causa da comida, ou por causa duma mantinha, ou por causa de um lugarzinho mais favorável, ou por causa de qualquer coisa... na realidade brigávamos porque por vezes esta rotina cansa-nos; ver sempre os mesmos focinhos aborrece-nos; estar constantemente a empurrar os outros por falta de espaço enerva-nos; estar sempre no mesmo metro quadrado mata-nos aos poucos... Não é nada fácil a vida num canil!
Comecei aperceber-me que de quando em quando vinham pessoas diferentes visitar-nos, faziam-nos uns miminhos e davam-me uns biscoitos que eu gostava muito. Um casal em especial vinha lá regularmente e começaram a levar-me a passear um dia por semana a que eles chamavam sábado. Sabia-me tão bem aquele passeio semanal. Todo o stress acumulado ao longo da semana esvai-se um pouco com aquele pequeno passeio e os dias custavam menos a passar. Começaram a chamar-me Biscuit e até achei piada ao nome.
Nunca soube o porquê, mas eles deixaram de aparecer... eu mantinha-me colado à porta na esperança que eles viessem. Mas passaram algumas semanas e continuaram sem aparecer. Comecei a ficar desesperado! Talvez lhes tivesse acontecido algo e isso deixava-me muito preocupado. Tentei chama-los. Gritei por eles e nada... todos os sábados tentava, mas eles não apareciam. Comecei a achar que ele talvez eles não voltassem... Bom... os humanos são mesmo assim. Não sabem dar valor ao compromisso. E que ser fiel é estar sempre lá. Nem que esse sempre seja apenas um sábado por semana! Não sabem o quanto ficamos dependentes desse compromisso.
Decidido a não confiar mais nos humanos e a conquistar a minha independência, comecei a estudar uma forma de sair da Aanifeira.
Os meus "colegas" diziam-me para eu não o fazer, porque ali tinha comida e água, um abrigo e algum conforto e que o mundo lá fora era cruel e que talvez pudesse ter a sorte de ser adoptado por alguém que nos desse um lar outrora perdido.
Mas eu tinha tomado a minha decisão e iria com ela em frente. Sabia por onde se entrava e saía e algumas pessoas eram distraídas e se fosse suficientemente rápido, iria ter sucesso!
Um dia a oportunidade surgiu e a sorte sorriu-me bem na hora. Já estava tão desesperado que quase trepava pelas paredes. Liberdade, doce liberdade! Por uma porta entreaberta, saí que nem uma flecha, pulando e dançando de alegria. Senti vários humanos atrás de mim, mas nem olhei para trás, só queria correr, correr desenfreadamente! Na estrada, nos campos, no mato, no pinhal, tantos cheiros novos, tantos caminhos para percorrer, ervas para rebolar... ahhh... é isto que nos faz sentir VIVOS! Corri até ficar exausto...
Depois de todo este esforço, a fome apertou um pouco, a sede já me secava a garganta e precisava de descansar. Olhei em volta e não vi nada que me pudesse saciar... "aqui pelo menos temos comida e água, um abrigo e algum conforto", lembrei-me do Teddy ter-me dito. Talvez tenha razão! Agora que a minha ânsia foi acalmada, talvez fosse bom regressar. Se calhar já não me aceitam de volta... ou se aceitarem, vou levar uma bronca daquelas... ou ainda me vão bater como faziam os anteriores donos e amarram-me a um canto sem comida nem água... bem... tenho de arriscar, afinal de contas aquela é a minha casa agora e é a eles que devo a minha fidelidade.
Lá voltei, um pouco a medo, mas cumprindo a meu dever. Podia ter optado por ir em frente, buscando outras paragens na esperança de conseguir beber, alimentar-me e um local para me abrigar. Mas os caninos têm por obrigação nunca abandonar a mão que o alimenta e cuida, mesmo que isso signifique levar pancada!
Apesar dos meus receios, fui bem recebido e recolocado no meu lugar! Os outros vieram logo perguntar-me como tinha sido, se me tinha cruzado com muitos cheiros novos, se tinha visto humanos maldosos, se vira os cães que ouvíamos ladrar ao longe durante a noite... mas eu estava tão feliz e cansado, que comi um pouco e fui para o meu canto dormir tão relaxadamente como há muito tempo não dormia.
Comecei a fazer a minha própria rotina... cada vez que podia, escapava-me e ao fim dumas horas voltava. Fi-lo repetidas vezes, até que as pessoas começavam elas próprias a colocar-me cá fora... bastava eu pedir muito muito muito... eh eh eh...
As terras circundantes da Aanifeira já não me eram estranhas e fui tratado com tanto carinho que tinha de dar algo em troca. Achei por bem tomar contas dessas terras. Comecei achar que ali era um lar perfeito. Um local onde animais e pessoas se relacionavam lindamente. Um grupo muito bonito se tinha ali juntado. E apareciam pessoas novas, que nos cumprimentavam, mimavam, davam-nos um biscoito. Tudo fantástico... bem, quase tudo! Havia aqueles que não paravam e seguiam sempre pelas minhas terras. Eu ia atrás deles furioso, dizendo-lhe para virem conhecer o "lar perfeito". Mas porque não paravam eles? Eu queria muito que eles parassem...
Neste momento estou no céu dos cães. É um local fantástico, com muita ervinha verde, com cheiros de todo o tipo (todos os dias encontro um cheiro novo), espaço imenso para corrermos e brincarmos. Temos sempre alguém que nos faz uma festa ou nos coça as costas (huuuummm, sabe tão bem). Comida variada, com muitos sabores, aguinha sempre fresca a correr em riachos. É lindo isto aqui. Encontrei todos os meus amigos que tinham partido antes de mim. Brincamos juntos, dormimos a soneca ao sol juntos e quando nos chateamos vamos para longe uns dos outros para nos voltarmos a encontrar quando a chatisse termina. É lindo o céu dos cães.
Só me entristece um pouco a saudade que tenho de todos vocês! Mas de vez em quando irei até aí! Já me disseram que poderei ir. Talvez alguns de vocês não me consigam ver, mas enquanto mantiverem viva a minha memória, estarei correndo na rua e nos campos da Antiga Bolsa de Gado em Mosteirô.
Obrigado pela melhor vida que me puderam proporcionar.
Biscuit
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