Thursday, October 07, 2004
A depressãozinha...
Só a Clara Ferreira Alves me faria rir até as lágrimas...
"Pronto, estou deprimida. Havia sintomas. Liguei a televisão e vi um filme que está para a história do cinema como Corin Tellado para a literatura: Pretty Woman (exatamente, aquele em que Julia Roberts consegue sair de Sunset Boulevard e dos passes de cem dolares para os braços do Richard Giro, uma tradição continuada em Hugh Grant.
Quando uma furtiva lágrima deslizou no meu rosto sabia que estava apanhada dos nervos. Dá-me todos os invernos, este género de depressão com tendencia para a lamechice, que me põe o coeficiente de inteligencia abaixo de zero.
Acordo cansada e espreito pela janela. Está cinzento? Chove? Faz frio? Começamos mal. Olho para a fila de automóveis parados na hora de ponta da manhã (que dura até as tres da tarde) e concebo o projecto de fugir para quente paragens, abandonar tudo, nunca mais ver ninguem conhecido, deixar de trabalhar, converter-me ao budismo, desligar o telefone..
Lembro-me que tenho o telefone desligado a quase uma semana, por causa de umas obras vizinhas que cortaram o cabo. A crise de nervos cresce; pior do que desejar desligar o telefone é, de facto, ter o telefone desligado[...] Nao me apetece comer, rectifico, só me apetece comer: doce de laranja à colherada e chocolate preto Valrhona, dieta matinal que ha-de arrumar comigo cedinho. Soma-lhe quatro cafés. Calminha. Concebo o segundo projecto do dia: ir a uma farmácia medir a tensão arterial. Nunca meço a tensão, posso ser hipertensa, tenho de tomar cuidado. À tarde hei-de telefonar a um ou dois médicos amigos e discutir doenças e as mortes prematuras de que tive conhecimento. A hipocondriazinha, que nos dias de sol anda escondida como drácula, regressa pela escuridão da tempestade mental, soturna e cozida com as paredes do meu cérebro.[...] Saio, vou comprar qualquer coisa para me entreter. Calminha. Nesta altura do ano consumo Elles e Marie Claires que em estado normal arrefecem no cantos da cozinha.[...]
Concebo o terceiro projecto do dia: partir para a Somália, o Perú, uma terra gretada e pobre, sobretudo quente, onde possa ajudar os que precisam. O meu egoísmo desespera-me; como posso alimentar a frivolidade quando tanta gente não tem que comer? Por esta altura a depressão está instalada na cabecinha, sentada no sofá do cerebelo, a fumar uma cigarrilha e a servir-se de álcoois. Calminha.[...]
Recebo uma carta de um amigo escocês que costuma distribuir a sua volta ponderação a dizer-me que numas férias em Cuba se apaixonou por uma cubana de vinte anos de idade com um filho de nove meses, e que vai largar tudo, o emprego, os céus grisalhos de Londres, o conforto burguês e regressar a Havana e aprender a língua para poder falar com ela. Partir, talvez sonhar. Tirar um sabático, matar o tédio e dar à vida uma oportunidade.
Que penso disto?
Mais uma furtiva lágrima. Ponho um disco de vozes negras que gemem coisas como there is a place in my heart [...]
Escrevo na volta do correio a dizer-lhe que sim, que deixe tudo, se faça cubano, case, adopte a criança, se converta ao catolicismo, ou ao castrismo, como quiser. Vita Brevis. (Mais tarde, ao atingir a insolvência, há-de agradecer-me o conselho, não acham?).
A tarde cai e com ela o peso dos anos. Nada fiz, nada sou, nada farei. Resta-me a consolação de saber que, se ficar sem nada, posso ganhar a vida como motorista de taxi (a carta de condução tem mais utilidade que o curso de direito). Ou partir para Cuba, onde tenho um amigo escocês que é feliz. E a tensão? Um taxista hipertenso é um perigo. Penso voltar ao assunto, mais tarde.
Pego num livro, só consigo ler poesia ou biografias de génios desgraçados que me fazem sentir poupada e adequada.
Aprecio Sylvia Plath e a cabeça dentro do forno, ou Ted Hughes, a razão da cabeça dentro do forno. E Philip Larkin, o homem que escreveu o verso imortal: “They fuck you up/ your Mum and Dad”. È noite. Estou pior do que o Goethe no leito de morte Mehr Licht, mehr Licht. A cabeça tomba-me sobre o peito. Em Londres diagnosticaram-me uma vez desordem depressiva sazonal causada pela falta de luz. Bastava-me expor a cabecinha todas as manhãs de Inverno a uma lâmpada forte durante duas ou três horas, até chegar a Primavera. Pensando bem é mais práctico ser hipertensa. Calminha".
Crónica incluída no livro A Pluma Caprichosa. De Clara Ferreira Alves.
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