Sunday, October 03, 2004
Escritora!
Tendo como pano de fundo a situação social e política, da época, no Chile; o livro Eva Luna conta as aventuras e desventuras homéricas da personagem principal, que dá o nome ao livro e é uma futura escritora, e de Rolf Carlé; desde o nascimento e até pouco depois de se conhecerem, já adultos.
Ao longo da narrativa desfilam os mais variados tipos humanos e são abordados temas hoje tão actuais como violência doméstica ou o transexualismo, entre outros, num cocktail genial através de personagens inesquecíveis.
É à margem do socialmente considerado normal, (seja lá o que isso for!) e por caminhos difíceis, que Eva Luna recolhe material e experiência para desenvolver a sua sensibilidade, que mais tarde se materializará como contadora de histórias.
Permito-me transcrever algumas linhas que achei fantásticas sobre esse dar á luz as ideias passando-as para papel:
[...]
Acordei de madrugada. Era uma quarta-feira suave e um pouco chuvosa, em nada diferente das outras da minha vida, mas esta guardo como dia único reservado só para mim. Desde que a professora Inês me ensinara o alfabeto, escrevia quase todas as noites, mas senti que esta era uma ocasião diferente, que poderia mudar o meu destino. Preparei um café forte sentei-me em frente da máquina, peguei numa folha de papel limpa e branca, como um lençol recém-engomado para fazer amor e introduzi-a no carreto. Senti qualquer coisa de estranho, como um arrepio agradável pelos ossos, pelo caminho das veias sobre a pele. Suspeitei que aquela página estava à minha espera desde há anos, que eu só tinha vivido para aquele instante e desejei que a partir daquele momento o meu único mester fosse agarrar as histórias suspensas no mais ténue ar, para as fazer minhas. Escrevi o meu nome e em seguida as palavras surgiram sem esforço, uma coisa entrelaçada noutra e em mais outra. As personagens desprenderam-se das sombras onde tinham permanecido ocultas durante anos e apareceram à luz dessa quarta feira, cada uma com o seu rosto próprio, voz, paixões e obsessões. Os relatos guardados na memória do meu nascimento e muitos outros que tinha registado ao longo dos anos nos meus cadernos ordenaram-se. Comecei a recordar factos muito longínquos, recuperei as historietas da minha mãe quando vivíamos entre os idiotas, os cancerosos e os embalsamados do professor Jones; apareceram um índio mordido por uma víbora e um tirano com as mãos devoradas pela lepra; resgatei uma solteirona que perdeu o couro cabeludo como se tivesse sido arrancado por uma máquina bobinadora, um dignatário no seu cadeirão de veludo episcopal, um árabe de coração generoso e tantos outros homens e mulheres cujas vidas estavam ao meu alcance para dispor delas segundo a minha própria e soberana vontade. Pouco a pouco o passado transformava-se em presente e apropriava-me também do futuro, os mortos recuperavam vida com a ilusão de eternidade, reuniam-se os dispersos e tudo o que estava esbatido pelo esquecimento adquiria contornos precisos.
[...]
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