"...Você consegue imaginar alguém que tenha sido sexualmente brutalizada tanto pelo pai quanto pela mãe, pegou AIDS com o próprio pai e engordou à força porque sua mãe queria que você fosse feia? Se você acha isso impossível de acontecer, bem vindo seja ao mundo plutoniano que nos desvela Sapphire – professora num dos lugares mais miseráveis de New York, onde histórias como esta são absurdamente comuns.
Sapphire, nome artístico de Ramona Lofton, escreveu Preciosa a partir de fatos reais. E, apesar de não dispormos da hora de nascimento da autora, pelo menos um dado referente ao dia de seu nascimento (4 de agosto de 1950) nos revela que Sapphire tem uma compreensão natural deste tipo denso de experiência: ela mesma, afinal, nasceu com o Sol em conjunção aplicativa a Plutão. Com esta conjunção, não é possível ver o mundo a partir de filtros coloridos. Experiências intensas e traumáticas se apresentam, nuas e cruas.
Preciosa figurou na lista dos mais vendidos do New York Times por mais de dois anos e se tornou filme fidedigno ao livro escrito. O nome da obra em inglês, Push, tem um significado especial no contexto, e se aplica bem à simbologia do Sol escorpiano e da Lua capricorniana da personagem principal. A vida não é um mar de rosas. A todo momento, a personagem se depara com alguém que lhe ordena:push! É preciso forçar (to push) para que um bebê nasça, para superar dificuldades pessoais, para ir além dos próprios limites. No original inglês, Sapphire nos fala de uma passagem do Talmude, em que somos avisados que em cada folha de grama há um anjo que diz: força! (push!)
Sapphire dava aulas de inglês para adultos no Bronx, bairro mais pobre de New York, quando uma de suas alunas disse que tinha sido estuprada pelo próprio pai e, do estupro, tinha ficado grávida de uma menina que nasceu com síndrome de Down. Diz Precious:
—Eu levei bomba na escola quando tava com 12 anos por causa que tive um neném do meu pai. Foi em 1983. Fiquei um ano fora da escola. Esse vai ser meu segundo neném. Minha filha tem Sindro de Dao. É retardada. (...) Meu nome é ClaireecePrecious Jones. Não sei por que tô contando isso. Acho que é porque não sei até onde vou com essa história, nem sei se isso é uma história nem por que tô falando; nem se vou começar do começo ou daqui desse ponto ou daqui a duas semanas. Daqui a duas semanas? Claro, a gente podemos fazer o que quiser quanto tá falando ou escrevendo, não é que nem viver, quando a gente só podemos fazer o que tá fazendo. Tem gente que conta uma história que não faz sentido nem é de verdade. Mas eu vou tentar fazer sentido e contar a verdade, se não de que porra adianta? Já não tem mentira e merda demais por aí?
É muito provável que esta data de nascimento seja a de alguém cuja história inspirou Sapphire. O principal indício que alimenta minha suspeita é o fato de que a versão cinematográfica do filme foi ao ar numa sessão fechada de lançamento no dia 4 de novembro de 2009, aniversário da personagem principal. O lançamento oficial se deu dois dias depois. O filme foi indicado a várias categorias do Oscar, e levou dois prêmios: melhor atriz coadjuvante e melhor roteiro adaptado.
Em Preciosa, somos apresentados a uma criatura tão maltratada pela vida que mal conseguimos reconhecer nela uma pessoa. Precious é estuprada constantemente pelo próprio pai, utilizada pela própria mãe como instrumento de masturbação desde que era apenas um bebê, vítima de espancamento cotidiano, forçada a comer por puro sadismo materno até ficar com mais de 100 quilos, e não conhece o mais ínfimo vestígio do que seja afeto. O resultado disso é um intenso atraso cognitivo e educacional. Precious tem 16 anos e não sabe ler, quase não fala, é violenta na escola e pensa em si mesma como “uma coisa”. Alimenta fantasias de vingança, mas não as executa. Está morta, ainda que viva. Mal fala, não sabe ler e fica apenas paralisada, enquanto o tempo passa e os abusos contra ela se sucedem.
Graças à intervenção da diretora do colégio, Precious é apresentada a um sistema alternativo de ensino, o “Cada Um Ensina a Um”, onde conhece outras meninas tão avariadas quanto ela: uma garota que foi violentada pelo irmão, outra que viu sua mãe ser assassinada pelo marido, outra que foi estuprada por vezes sem fim por ser lésbica, e tantos outros casos que nos parecem absurdos demais para serem verdadeiros. Mas são. A professora (inspirada na própria autora, Sapphire) se chama Blue Rain e mais do que ensina Precious a ler. Oferece afeto. E, na medida em que se reconhece como alguém através dos olhos dos outros, Precious inicia sua jornada de cura, que se manifesta primeiramente em sonhos carregados de simbolismo, em que ela ao mesmo tempo se lembra de coisas muito antigas que preferia esquecer, e ressignifica a experiência, resgatando a si mesma
...
Mas esta Lua capricorniana forma trígono com seu próprio dispositor, Saturno. Precious é resistente. Uma sobrevivente. O que poderia tê-la destruído, a deixou mais forte. Sol e Júpiter estão em conjunção, um alento de sorte que podemos também interpretar como capacidade de se superar, aproveitando as oportunidades que a vida dá a todos – até aos mais maltratados.
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(...texto integral)
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