Sunday, April 09, 2006

Lugares Mágicos

















O meu actual livro-companheiro...

Bica Escaldada de Alice Vieira é a compilação de textos publicados em revistas e jornais, que são instantâneos de uma realidade descrita e vivida com uma doçura plena de observação.
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Entro numa livraria como quem entra num santuário, onde o direito de asilo nos é sempre garantido. Nas cidades que não conheço, é sempre o primeiro lugar que procuro e nunca resisto a entrar quando ela se atravessa no meu caminho. As livrarias fazem parte da minha família. São amigas de infância. É nelas que marco encontro com amigos, é passando a mão pelas capas dos seus livros que desfaço neuras e procuro energias. Claro que há as livrarias de eleição, aquelas a que, por qualquer motivo, me habituei como ao café da manhã ou ao jornal comprado no quiosque de sempre: durante anos a Quadrante foi a minha segunda casa, uma espécie de baby-sitter para os meus filhos pequenos, que lá deixava rodeados de livros e vigiados pela Nini, uma cadela com quem partilhavam festas e lambidelas nos chupas-chupas
[...]
E há ainda as livrarias mágicas, aquelas sem as quais os lugares, para mim, perdiam muito da sua razão de ser: ir ao Porto sem ter tempo para entrar na Lello, não vale a pena; ir a Londres sem horas disponíveis para a Waterstone, é um desperdício.

E depois há aquelas velhíssimas lojas que são livrarias, mas tambem vendem revistas de bordados e croché, calendários e postais ilustrados, e muitos livros de edição de autor que acumulam pó porque já ali estão há que anos com um cheiro a papel que se esfarela nos dedos e nos traz à lembrança os livros de histórias lidos na infância, com meninos «orphãos» que se perdiam nas florestas.

Numa dessas velhas livrarias de bairro entrei há dias, exactamente porque na montra deparei com um livro, decerto tão velho como a livraria, de que tinha gostado muito em criança e de que há muito perdera o rasto. O dono da loja ( e tambem tão velho como ela) passou tormentos para descobrir o preço do livro, abriu gavetas, fechou gavetas, consultou papelada, coçou a cabeça, virou e revirou o livro
[...]
já ia a sair com o meu tesouro debaixo do braço, quando entra uma jovem de ar aborrecido que coloca um livro em cima do balcão e diz: «venho trocar este livro que está estragado». O homem olha o livro e não entende, não tem páginas rasgadas, não tem manchas em lado nenhum, mas ela insiste [...] ela abre o livro e enfia os dedos pelas páginas «está a ver? as folhas estao todas juntas, assim não se consegue ler!»


[...] antes de sair, fiz a minha a minha boa acção do dia e expliquei à jovem que, dantes, era assim que todos os livros se publicavam, e que bastava ela pegar numa faquinha e abrir, e logo podia ler o livro à vontade, e que até havia faquinhas de propósito para isso, para abrir livros. Ela encolheu os ombros, «cá para mim é um livro estragado, mas prontos», e lá foi à vida. O velhote, esse, nunca chegou a perceber de que é que ela se queixava.


(Conto Lugares Mágicos)
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