Tuesday, September 21, 2004
Laura Esquivel
Laura Esquivel
Relendo um livro com muitos conceitos interessantes. Não partilho a maioria das opções culinárias, de todo, patentes no livro, mas nem por isso deixam de surpreender agradavelmente as reflexões sobre as pessoas, a alimentação, religiões e modos sociais.
"Os primeiros anos da minha vida passeio-os junto ao fogão da cozinha da minha mãe e da minha avó, vendo como estas sábias mulheres, ao entrarem no recinto sagrado da cozinha se convertiam em sacerdotisas, grandes alquimistas que brincavam com a agua, o ar, o fogo e a terra, os quatro elementos que constituem a razão de ser do universo.
O mais surpreendente é que o faziam com a maior das humildades, como se não estivessem a fazes nada de mais, como se não estivessem a transformar o mundo através do poder purificador do fogo, como se não soubessem que os alimentos que preparavam e nós comíamos permaneciam dentro dos nossos corpos por muitas horas, alterando quimicamente o nosso organismo, nutrindo-nos a alma e o espírito,[...]
Foi aí junto ao fogão, que recebi da minha mãe as primeiras lições de vida. Foi aí que Saturnina, uma criada recém-chegada do campo, a quem carinhosamente chamávamos Sato, me impediu um dia um dia de pisar um grão de milho caído no chão, porque nele habitava o Deus do Milho e não se lhe podia faltar ao respeito. Foi aí no lugar mais comum para receber visitas, que me inteirei do que se passava no mundo. Foi aí que minha mãe teve longas conversas com a minha avó, com as minhas tias, e, de vez em quando, com algum parente já morto. Foi aí portanto, que presa ao poder hipnótico das chamas, escutei todo o tipo de histórias, mas sobretudo histórias de mulheres.
Mais tarde, tive de sair, de me afastar completamente da cozinha. Tinha de estudar, de me preparar para o meu futuro papel na sociedade. A escola estava cheia de conhecimentos e surpresas. Para começar, fiquei a saber que dois mais dois são quatro, que nem os mortos, nem as pedras nem as plantas falam, que não existem fantasmas, que o Deus do Milho e todos os outros deuses pertencem ao pensamento mágico e primitivo do ser humano, o qual não tem cabimento no mundo racional, cientifíco e moderno.
Safa! Quanta coisa eu aprendi!. Nessa época, sentia-me muito superior ás pobres mulheres que passavam a vida fechadas na cozinha. Tinha muita pena de que ninguém se tivesse dado ao trabalho de lhes dizer, entre outras coisas, que o Deus do Milho não existia. Acreditava que nos livros e nas universidades estava contida toda a verdade do universo. Com o diploma na mão e a semente da revolução na outra, o mundo abria-se diante de mim."
[...]
Laura Esquivel – "Íntimas Seculências"
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