Existem dias em que eu acho que as pessoas estao todas a enlouquecer devagarinho e ainda não deram por isso. Ou estao a enlouquecer devagarinho e não sabem que estao a enlouquecer devagarinho e é melhor para elas. São os dias em que o homem do restaurante olha para mim sem me reconhecer, depois de noutros dias felizes me ter cumprimentado como se morresse de saudades. São os dias em que o motorista de taxi vira a cabeça para trás e pergunta se acredito em nossa senhora e se pratico o bem. São os dias em que o homem da tabacaria começa a falar como se estivesse a redigir um manifesto. Em que o carteiro dá murros na porta. Em que o vizinho começa a arrumar os carros da rua, aos gritos, do terceiro andar como se a rua fosse dele. Em que o policia acaricia o livrinho das multas como quem toca numa mulher e diz com ar engasgado "está autuada" como se fosse um prazer físico. Os dias em que a humanidade me parece cansada, envelhecida, gasta pelo uso. Os dias da mansidão, da cólera em silêncio e das rugas ao canto da boca.[...]
Excerto da crónica que dá o titulo ao post, do livro A Pluma Caprichosa.
A Pluma Caprichosa é a compilação das crónicas desta advogada que preferiu o jornalismo e já foi repórter de cenários de guerra, a Clara Ferreira Alves.
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